Vírgula não é ponto final
João Aipoke
Crise. Estamos no meio de uma crise. Ou melhor, de várias crises e este é o primeiro
texto que não estou escrevendo.
Sou um homem de meia idade e poucas meias palavras. E escrever, essa árdua tarefa
que “escolhi” por profissão, travou no meio de uma pandemia, em o que era quase meu
estilo de vida, passa a ser ato de responsabilidade coletiva.
Para o bem ou para o mal, tenho aprendido a superar muita coisa, e acredito que
divulgando a minha experiência, de alguma forma, posso poder ajudar.
Não vai ser autoajuda. Prometo.
Se não bastassem as incertezas emergentes da doença pandêmica desconhecida, na
primeira semana da quarentena, entre arcos dramáticos e caracterizações de
personagens, um cabo se enrola na perna e outra crise se estabelece: a queda do meu
notebook.
E esta agora?
Totalmente submerso no mundo fantástico, a quebra da máquina e me impede de
finalizar o primeiro tratamento da “A Ira do Senhor”, roteiro de uma pretensa série para
televisão, meu último projeto.
Bem... Finalizar é jeito de falar, afinal como alguém disse certa vez, a gente nunca
acaba um texto, abandona-o.
Um autor lendo e relendo seus escritos, sempre quer mudar uma vírgula de lugar.
Sempre quer encontrar um sinônimo. Uma palavra que expresse melhor. E é muito
difícil colocar um ponto final...
Mas preciso ser sincero. Como este é o primeiro texto que não estou escrevendo, meus
vizinhos devem achar que fiquei louco.
Escuto comentários não tão discretos nesse sentido. Afinal, parece que estou trancado
em casa, falando sozinho.
A escrita é o suporte indispensável menos para loucura do que para a criação. Sempre
foi assim! O verbo veio primeiro até na bíblia. Como escritor... Espere...
Não sei se isso é outra crise!
Afinal mudou o processo. Eu não estou escrevendo. Será que não sou mais escritor?
Volto a ditar.
Quase como autômato, sinto meus dedos tocarem levemente a minha perna, como que
digitando imaginativamente as ideias da minha cabeça.
Ditar um texto parece ser muito cômodo. Mas não é bem assim.
Estou com medo de me acostumar com esta onerosa facilidade. As palavras, algumas
sussurradas, para facilitar a comunicação, surgem automaticamente na tela. Eu que sou
saudosista do Orkut, cujo fim levou embora parte das minhas memorias, me lembra de
quanto estou velho e que preciso me adaptar as mudanças.
E nem a folha em branco, antiga companheira mordaz dos momentos de pouca
inspiração, me acalenta na solidão da escrita. Ou melhor, da não escrita.
Sempre gostei de escrever, mas nem sempre gostava do que escrevia.
Por isso, antigos textos esboçados em cadernos de folhas amareladas entulham meu
quarto de bagunça. Jurei arrumar, na primeira folga, mas que sempre fica para depois.
O onírico embala meus dias. E o tempo se submete aos sonhos e a criação.
Preciso resolver o final da minha história...
Falo. Outra vez, a inteligência artificial do aplicativo registra palavra diversa da que eu
queria expressar. Tenho vontade de jogar o celular longe. Resisto resiliente.
Até agora, nenhuma ingerência foi proveitosa para o texto.
Desisto de tentar editar o roteiro no celular. É como se, vindo direto da expressão oral, a
lógica do texto, de alguma forma, se diluísse numa polifonia estranha a minha
acostumada sensibilidade.
Parto novamente para a folha em branco. Depois, ditando, transfiro para o registro
digital. Pego o caderno e uma caneta.
Penso:
Mas aí as ideais fogem como baratas ao acender das luzes.
Devaneio e outra coisa nada a ver atravessa minha mente.
Dizem que o ser humano se acostuma com tudo. Que a adaptação é a nossa maior
virtude, permitindo a nossa espécie viver nos locais mais diversos do planeta. Do alto
das montanhas aos desertos escaldantes.
E eu preciso me adaptar as mudanças e o meu polegar opositor precisa ter outra função
além de catar letras no teclado.
E por falar nisto, este planeta nunca mais será o mesmo.
Poucos eventos tiveram a capacidade de unificar a experiência humana como as dúvidas
emergentes desta pandemia.
Um vírus, que não tem remédio, nem vacina, que se transmite e mata vertiginosamente,
tendo como principal prevenção, restrição do contato entre as pessoas, possíveis vetores
de transmissão da doença.
Boletins epidemiológicos registram o crescimento exponencial dos contaminados.
Os governantes tateiam no escuro. Para piorar, o principal responsável pelo
enfrentamento da epidemia no meu país nem acredita na doença, apesar dos índices
covid crescentes e dos mortos aos milhares. Até membros da equipe presidencial,
depois de uma viagem ao exterior, comprovadamente se contaminaram, mas quebraram
a quarentena e o isolamento.
Pro dito cujo mostrar o resultado do exame foi um custo. E há controvérsias sobre a
veracidade do negativo para o vírus do presidente mais odiado da história do Brasil.
Em algumas culturas, o distanciamento social, única medida efetiva no combate à
contaminação, é difícil, mas para sociedades, como a brasileira, as mudanças parecem
dramáticas.
Brasileiro tem o mau hábito da demasiada proximidade. De falar se encostando às
pessoas. De demostrar efusivo afeto.
Sem falar, nos mais menos educados, que falam iguais a um chafariz de praça pública.
Para estes, máscaras não serão suficientes e recomendo o uso de guarda-chuvas. Mas
deve ter gente assim em todo lugar. Falta de educação não é vinculo ou atribuição
exclusivamente tupiniquim.
Imagino o carnaval sem aglomerações, com outras mascaras e limites de segurança.
Ainda bem, que mudei de profissão a tempo. Imagina um show de palhaço onde não se
pode ver os sorrisos?
Que grande desafio será a pegação! E é melhor estabelecermos protocolos rígidos.
Proibido andar de mãos dadas. Talvez tomar banhos juntos venha antes dos beijos ou
será que será só a medição da temperatura?
Poderemos no futuro, caso a profilaxia dure muito tempo, até mudar a expressão
sexualidade e o erótico. Depois de uma temporada de uso constante de máscaras,
nudes devem ser de rostos descobertos. Ai amor... deixa eu ver esta sua boca carnuda.
Penso no maior desafio da contemporaneidade: reinventar o modo de vida. Se adaptar
aos desafios, individuais e coletivos, para criar o “novo normal”. E adaptação é o meu
sobrenome.
Por esta soma de fatores resolvi escrever este conto da Pandemia.
Registrar a mudança no momento em que precisamos mudar. Ou será o registro do
momento de mudar em que precisamos da mudança?
Também teve outros fatores motivacionais: artista falido buscando realocação
profissional se depara com uma oportunidade e muitos desafios.
A oportunidade, um concurso de literatura com atrativa premiação.
E os desafios: Fazer de forma diferente o que sempre fiz: Escrever. Máximo de 20
páginas. Menos de 10 dias. Curto prazo. Escrever... Mas escrever no meio da paranoia
da pandemia.
Escrever não é fácil.
Ainda mais, quando a boca já está torta pelo uso do cachimbo e se para um processo no
meio para começar outro.
Apesar da minha cabeça focada na quarta temporada e suas centenas de personagens e
conflitos. Vozes que precisarão esperar mais um pouco, antes de chocarem o mundo.
Escrever é o ato mais solitário do mundo. Assim como a prevenção da doença, exige
isolamento.
A realidade e a ficção se misturam na cabeça de um autor. Mas sem perder o frágil
equilíbrio entre o que é real e o que é criado. Senão vira caso clínico.
Um mundo particular, que trás adereços, sentidos, expressões da vida real. Mas a ficção
não é a realidade.
E mesmo nós tempos difíceis, onde os piores pesadelos parecem se materializar, a
ficção pode ajudar a humanidade. Não substituindo a verdade, mas trazendo parâmetros,
inclusive de contra ponto para estabelecermos o que será o novo normal.
Esta pandemia parou o mundo e obrigou, individual e coletivamente, todos
reorganizarem seu modo de vida.
O essencial realmente é invisível aos olhos, como um vírus espreitando os desatentos e
descuidados.
Na nova configuração da sociedade, as pessoas deveram criar parâmetros aceitáveis de
convivência humana.
O ser humano é um ser gregário, que se estabelece enquanto sujeito, sempre em
estruturas coletivas. Somos os seres mais dependentes dos outros. Se uma criança,
recém-nascida, for abandonada, morre em poucos dias.
A nossa fraqueza, nos obrigou a organizar uma lógica de cuidado, nem que seja para
perpetuação da espécie. Ela está expressa biologicamente.
Mas,
A realidade é mais assombrosa que um roteiro cinematográfico.
Tantas mortes,
Será que a vida está perdendo o valor?
Será que estas mortes, que obrigaram médicos escolherem quem teria acesso as UTIs, e
alguma chance de sobreviver, só vai virar estatística para humanidade?
Vejo as notícias e me assombro.
Desalento pelos mortos; medo pelos vivos.
Vejo que aumentam as separações e divórcios durante a quarentena. Vejo famílias
perderem parentes com caixão fechado e me solidarizo. Despedidas fúnebres sem ver o
corpo de um ente querido deve ser muito doloroso.
Enquanto o Ocidente começa a viver a experiência claustrofóbica...
Mas a quarentena forçada deixou algumas consequências inesperadas. Muitos casais
parecem não ter resistido à proximidade em tempo integral...
Os dados mostram que aumentou a violência domestica no isolamento da pandemia. Se
tatos casos já eram subnotificados, imagina agora...
Desisto de pensar nas notícias e volto a ditar.
Juro que apareceu um indevido emoji no meio do texto no word, programa de edição
do celular.
Paranoia.
Será um hacker? Será que outro vírus, além do COVID 19, teve acesso a minha vida?
Será que minha existência virtual esta em risco?
Antes ela do que a real.
Resolvo voltar a ditar ponto.
Não não era para escrever a palavra.
Era para pôr o sinal. A última frase não deveria por a palavra.
Agora o sinal que tá errado.
Ajeito os óculos e digito desajeitado na minúscula tela do celular, consertando parte da
pontuação.
Porém, resolvo deixar aqui, o registro da dificuldade de adequação do processo.
Mudar nem sempre é mesmo fácil. E nem sempre o que dizemos quer dizer o que
entendem. Ainda mais, com o mundo encantado em pandemia.
Retomo o tratamento do guião.
Sete anjas enviadas ao inferno recebem a maldição de um dragão, transformadas em
peixes em extinção iminente, quando João, um músico exorcista, fugindo da multidão
que o apedrejava, após a fracassada estreia de sua banda "Constantino manda
lembranças", esbarra em um aquário dentro de um petshop em obras.
Sete anjas, um aquário e a água escorrendo e o horário...
Na minha cabeça diálogos se formam.
A água escorrendo...
Pergunto e eu mesmo respondo.
No talhe e no detalhe: Uma aventura fantástica, barroca, pós-moderna e cabocla.
Acho pretensioso e faço uma careta.
Abandono o texto e resolvo jogar no mobile.
Vou usar a estratégia de descer na cabeça do dragão e preparar para enfrentar o maldito
cachorro. Quem foi mesmo que disse que os dragões são os moinhos de vento?
Barcaleone que me morda. Mal cheguei e já morri!?
Outro salto. Resolvo parar na frente do moinho e tirar uma foto. Na verdade faço uma
captura de tela. Tiros tiros.
Será que o enquadramento ficou bom? Subo para o segundo andar. Pego a primeira
arma que encontro e espero agachado, próximo da escada. Tem outra escada. Escuto
passos apressados. Mais tiros. Vários jogadores estão vindo para a torre.
Por que jogam em dupla ou trio um jogo que era para ser de solo? Lembro do Han solo
da guerra nas estrelas.
Um adversário aparece. Tá morto.
Lembro dos políticos empresários defendendo os CNPJs 1 . Tudo bem cancelar alguns
CPFs 2 .
Outro adversário aparece na escada oposta. Recarrego e mudo a posição. Está morto.
Lembro do jogo no videogame. É diferente jogar no celular. Muito mais difícil. Lembro
da segunda guerra. Morri de novo.
A pandemia é igual um jogo novo, que a gente não conhece as funções do controle.
Morre-se muito. A diferença é que no virtual, pode-se morrer várias vezes.
Preciso comprar pão. Procuro uma máscara. Encontro uma de pintura de parede, mas
está sem elástico.
Mesmo assim, tomo coragem e vou à padaria, poucos quarteirões da minha casa.
Um amigo tenta me abraçar na rua. Corro dele quase xingando sua mãe.
Muitas pessoas sem proteção. Apesar dos milhares de mortos, das despedidas sem
abraços e dos velórios “sem corpo”. Quanta inconsequência!
Compro pão, passo álcool gel na mão e volto correndo para casa.
Muitos traumas familiares serão filhos desta Pandemia.
Os parentes não podem ver os corpos dos infectados, enterrados em caixões fechados.
Lembro da caixa do cerebero.
Tempo continuo e na narrativa nem tudo está na ordem.
Levanto, pego o cotonete e me surpreendo quando sangue sai do meu ouvido.
Consulto no Google e me tranquilizo. Deve ter sido por causa do fone de ouvido.
Vejo outro vídeo em looping no Tik Tok, novo aplicativo da moda.
Estou fazendo tudo diferente apesar de manter o isolamento habitual.
Antes para escrever. Agora para falar. E pra não morrer...
Tenho uma saúde debilitada. Overdose de antibióticos não fazem bem para ninguém.
É possível mudar fazendo a mesma coisa? O será que só estou mudando as desculpas?
O registro é o que importa.
Desligo o programa de edição e resolvo jogar novamente.
Penso no paradoxo de descrever posterirormente o que acontece em tempo adverso.
Quebra do tempo continuo. Narrativas paralelas. Muitas dúvidas do que é digno de nota.
Carrego o pré-jogo.
Uma contagem inicia na tela.
Olho para o chão e vejo pegadas. O rastreador apita. Escuto o barulho de uma faca
cortando o ar. Estou na fabrica. Afasto. Corro para um helicóptero. Faltam 30 segundos.
Vou tentar pousar em cima da caixa d’água.
Barulho. Outro jogador chega e o helicóptero sai. Paro frustrado e vejo a nave se afastar.
Outro barulho de faca cortando no ar.
O jogo começa.
Penso no que o personagem do jogo deveria estar pensando.
Se o objetivo é a sobrevivência, para que criar sub-objetivos? Pra que dificultar mais o
que já é muito difícil?
Avisto o alvo.
Penso nele sendo irônico enquanto pula em queda livre no rumo do moinho de vento.
A pandemia não deve ser igual ao pré-jogo do Call of duty.
Um marcador em contagem regressiva, armas que não funcionam, e um inimigo
invisível, que pode estar em qualquer lugar, quando só ouvimos o barulho da faca e
sentimos a ferida aberta.
Digito com umas imagens selecionadas do jogo e posto na rede social.
Cinco minutos deslizando o dedo no teclado e me horrorizo ao saber que o nome do
policial que assassinou outro negro durante a pandemia é o mesmo do personagem do
filme: Outra história Americana.
Triste realidade.
Penso vendo as chamas da revolta consumirem os prédios da policia local. Sem justiça,
sem paz é um lema justo de justa luta! As instituições que trazem no DNA a opressão, o
preconceito e a discriminação devem acabar.
Incluo o machismo, a xenofobia e a homofobia na lista e me consolo lembrando dos
textos militantes pela descolonização de um não patrício.
Quem dera o único mal do mundo fosse este maldito vírus. Quem dera o econômico não
tivesse primazia nesta ditadura global do capital. Quem dera a cadela do fascismo não
estivesse latindo em todos os cantos do planeta. Quem o ódio não fosse extrato do
grande poder que a humanidade recebeu com as novas tecnologias de comunicação e
informação.
Will Smith declara no Twitter que o racismo não está aumentando. Está sendo gravado.
Lembro de um texto antigo. Que não devemos confundir o mal, com quem representa o
mal.
Circunstancialmente, pessoas são o vetor de transmissão. Tanto do ódio, quanto do
vírus.
A centralização dos recursos e das decisões no alto da pirâmide econômica,
desempoderando países, povos e nações, na crise final do sistema capitalista tem suas
consequências.
...A história pela noticia, a memoria pelo silêncio, o futuro pelo passado, o problema
pela solução, neste mundo sem antes nem depois...
Olho o aplicativo centenas de mensagens não lidas.
Infelizmente o correio está deixando a desejar nas entregas. Semana que vem, vou
tomar as providencias... Informa-me relutante em um áudio, o técnico de informática
que vai dar manutenção no meu notebook.
Resolvo, por respeito a sua pessoa, lhe contar que até estes contratempos serão
registrados neste conto da quarentena.
Enviar.
E não podemos deixar que as novas normas sanitárias criem um ser mais egoísta, nem
que o novo jeito pós pandemia aprofunde o
isolamento no meio de todo este mal estar
O paraquedas abre. Caio no alto da torre: o topo da cabeça do dragão.
Me equipo e paro no meio da escada. O mapa não mostra ainda a safe.
Resolvo descer encarar o cachorro.
A zona segura fecha e o cachorro fica de fora. Resolvo enfrentar mesmo assim.
Saio da torre e escuto tiros. Subo em uma moto parada próximo.
Ando alguns metros, pulo e faço mira.
Outro adversário morto.
A moto atravessa o pasto e chega no descampado. O cachorro aparece. Pulo com
veículo ainda em movimento.
Começo a atirar.
Uma bola de fogo cai ao meu lado.
O cachorro avança.
A safe está fechando...
O cachorro para em uma certa distância, faz meia volta e corre pro meio da arena. Atiro
até ele desaparecer no centro do pasto.
Subo na moto novamente. Acelero e o cachorro aparece. A zona segura está fechando.
Pulo da moto. As balas acertam o animal que avança ameaçador na minha direção.
Recuo, enquanto ele destrói a moto ao meu lado. O bicho avança sobre mim e me
acerta.
Quase morro.
Saio correndo e aplico adrenalina.
Balas passam zunindo enquanto me recupero.
Ao longe, vejo a safe se afastar.
Aplico outra dona Lina. O corretor ortográfico erra o que eu digo e decido deixar assim
mesmo.
Estou quase chegando na zona segura e a adrenalina sobe o ânimo do personagem.
Abro a mochila e pego o kit médico. Qual é mesmo comando? Por que essa merda não
funciona quando tá correndo?
Uso o recurso e corro como louco.
Mais tiros. Morri outra vez.
Desisto do jogo e abro o aplicativo de edição de texto.
Dito e acho que está dando certo.
Para quem sobreviveu ao assédio de adolescentes taradas ricas, quando fazia shows de
palhaço, sobrevive a qualquer coisa.
Mas essa pandemia é diferente.
Lembro do osso quebrado na minha perna e passo os dedos levemente sobre os
parafusos.
Literalmente agora eu sou metal. Pena que dói quando esfria.
Lembro de como foi estranho cair da própria altura, catando madeira para fazer vaca
atolada no fogão de lenha.
Quando voltei do hospital, a mandioca tinha estragado.
Mais de 15 dias, tomando morfina na veia pela dor extrema durante o segundo turno da
eleição presidencial de 2014. Nossa! Já passou seis anos.
Quebrar a tíbia não é uma fratura fácil. O problema foi infecção hospitalar, não
deixando operar logo. Esta maldita me entupiu de remédios e overdose de antibióticos
não faz bem para nenhum organismo.
Este tempo de molho mudou meus hábitos. Mal conseguia ficar em pé.
Nem tomar banho todo dia virou mais tarefa cotidiana.
Agora nova adequação.
Na pandemia, tento programar as imprescindíveis saídas de casa, com a chuveirada,
sempre que necessária.
Resolvo tomar banho. Que bom que não está chovendo.
Vazamento que inunda a cozinha é outro desistimulante, pois depois do banho tenho
que enxugar quase todo o chão da casa.
O pedreiro disse que a culpa foi do material hidráulico de baixa qualidade que meu
irmão comprou.
Me levanto, pego a toalha, abro a porta, saio no corredor e abro o registro.
Escuto a água pingar no cano. E nem posso pagar mais de ecologista, pois não desligo o
chuveiro enquanto ensaboo meu corpo.
Mais trabalho para secar o chão, na mesma lógica de desperdício. Assim que sobrar
algum, faço a necessária reforma hidráulica.
Por isto, o vírus não é meu único problema sanitário.
Salvar o arquivo.
Por que os comandos de voz não fazem as tarefas para além do texto?
Resolvo fazer outra coisa.
Deslocamento de sentido de valor.
Se a única constante é a mudança, se a única certeza é a dúvida, a dúvida constante será
nossa única certeza?
A polifonia distópica que estamos vivendo está mais pra um bar de bêbados falando
sozinhos do que uma praça de deliberação pública. A àgora agora é outra.
A verdade na pós-verdade está virando ficção.
A realidade quem define é variável de equação. Um logaritmo que escolhe o que você
vê, o que você lê, quem é você, na cidade escandalosa do reino das Fake News.
A redefinição de papéis...
Paro uma canção que tocava no violão por causa desta frase. Pego o celular e começo a
digitar.
Lembro do furgunet. Fico na dúvida e consulto a internet. Aparece uma coisa nada a
ver. Faço nova pergunta para o "oraculo". Não satisfeito com a resposta printo a tela.
Tudo bem que a pergunta é “você está de zoeira Google?”
Às vezes me confundo, desculpe se foi o caso é uma boa resposta.
Resolvo perdoar a inteligência artificial do programa de pesquisa e seguir a vida.
Depois de quase meia hora com o Google apresentando alternativas ao termo solicitado,
desisto de procurar.
Mando abrir o word e volto a ditar.
Logoritmo funciona em termos específicos. Varias variáveis interconectadas.
Dito e vou jogar. Caiu outra ilusão. O cerbero ataca depois da cerca. Morri de novo.
Entre uma partida e outra, fico um momento em dúvida se registro ou continuo o jogo.
Resolvo chegar de carro. Talvez ele ataque o veículo igual fez com a moto.
Outro jogador prefere atirar em mim ao maldito cão incendiado do inferno. Morri de
novo.
Resolvo fazer outra coisa.
Preciso voltar a pensar no roteiro. Como se fizesse outra coisa na vida!
O purgatório acabou e Saul está voltando para casa. O dragão da vaidade e o dragão da
luxúria derrotam o grande dragão da ganância. A cidade escandalosa sucumbe ao reino
da fake News.
Penso no tempo que fui coroinha de igreja e me lembro das senhoras carolas. O que será
elas achariam do meu texto?
Sete anjas enviadas ao inferno na rua perto da casa delas também deve ser considerado.
Ou o dragão no fundo de uma velha mina abandonada. Isto sem falar nas cem gárgulas
com as armas mais poderosas do céu.
Imagino até os comentários indignados, um pouco antes da novena.
É... Não dá para agradar todo mundo mesmo.
Mas aí, me lembro dos trechos do sermão do padre António Vieira, e justifico a minha
consciência.
Já que estamos voltando para a idade média, nada como uma receita medieval de como
fazer do veneno, o remédio e neste sentido, o sermão da quarta dominga é divino e
inspirador.
Lembro que geralmente é assim que se fazem as vacinas. Tomará que os testes com
humanos sejam efetivos.
Uma propaganda de um filme me inspira e resolvo um problema estético, de um final
hipotético da série.
Abro o Google maps. Estação ferroviária de Ouro Preto. O mapa abre.
Vejo arquitetura e lembro da estação perto da minha casa.
Olho o Watsapp na expectativa do dia que o técnico pode atender minha solicitação.
Talvez as peças não tenham chegado.
Ele informa que chegou as dobradiças e aguarda as outras peças.
Depois da operação tive que reaprender muita coisa, já que a maioria das coisas que eu
gostava ficou tão dolorida de fazer.
Não posso sair para dançar, nem fazer longas caminhadas na natureza nada virgem ou
alguma manifestação politica de uma variada gama de direitos que me foram negados ou que sou solidário. Não posso fazer
recreação nem trabalhar como palhaço.
No mundo em que postos e profissões se desintegram como asteroides no impacto com
nosso planeta. Tive que encontrar outra perspectiva de trabalho.
Busquei o que tem de melhor de mim e não sei se consegui encontrar algo que valha.
Novos limites. Menos possibilidades.
Em busca de saúde, principalmente mental, abracei meus sonhos de infância.
Mas só as ideias na cabeça não são suficientes. É preciso da câmera na mão.
E enquanto não chego nessa etapa, arquiteto meus planos e sustento na escrita de
roteiros a minha utopia em ideias esparramadas.
Muitas ideias...
Nem sempre com o devido registro.
Com o celular na mão, resolvo ler as notícias não divulgadas na grande mídia.
O Canal de economia americano "Bloomberg" traz no alto da página traz a data em
inglês: 4 feira, 27/05/20 "Copasa: Estado autoriza BNDES a fazer consulta
desestatização". Petrobras eleva preço gasolina em 5% e diesel em 7% "Tudo na calada da mídia pelo Corona Vírus. ABSURDO.
Um ano que começou com a Amazônia pegando fogo não deveria ser nada bom! Numa
crise sanitária, o louco do governador em parceria com o transloucado do Bolsonazi
querem privatizar o tratamento de água no meu estado.
Falo que é meu por propriedade e penso que todos os cidadãos deveriam se sentir assim.
Pena que o que é de todo mundo acaba sendo de quase ninguém.
Lembro dos bois e da desregulamentação proposta contra as legislações ambientais. Isto
em uma reunião que parecia mais uma resenha de gang de bairro do que o ministério
que devia dirigir o Brasil.
Releio o texto ditado e acho que não está dando certo.
Resolvo tentar ligar o notebook de novo. A dobradiça quebrou e a tela não fica
devidamente posicionada.
Para minha surpresa, a máquina funciona desta vez.
Abro o celular e envio por e-mail o texto para mim mesmo.
Até agora, tudo bem!
Equilibrando o notebook no colo, digito satisfeito uma boa parte do texto.
Depois de quase quarenta dias recebo o coronavoucher.
Fumo como um doido.
Infelizmente o correio está deixando a desejar nas entregas. Semana que vem, vou
tomar as providencias... Informa-me relutante o técnico de informática que vai dar
manutenção no meu notebook. Resolvo, por respeito a sua pessoa, lhe contar que até
estes contratempos serão registrados neste conto da quarentena.
Estamos em guerra. O inimigo está oculto. A única arma é o isolamento. Ficar em casa.
Lembro de um comentário em uma rede social. “É possível salvar o mundo sem sair de
casa, mas tem gente que faz errado.
O tio de uma amiga de um bairro próximo morre de covid. Os frios números que tanto
me chocavam agora têm rostos.
O inverno está chegando!!! Bem que John Snow já avisava.
Numa sociedade que urge a construção de pontes não pode ser salva por muros. Ou
pode?
E ninguém sabe como vai ser.
Vejo lugares com corpos abandonados na rua. Covas coletivas.
Lembro das intermináveis horas dos programas noticiosos sobre quedas de avião,
rompimentos de barragens, ou assassinato de alguma subcelebridade.
Lembro do genocídio cotidiano de jovens negros periféricos. Lembro que o Brasil é
onde mais se mata militantes políticos no mundo.
Lembro que #EleNão governa.
Hoje os mortos se contam aos milhares. Na fria estatística de várias tragédias
simultâneas.
Me sinto anestesiado.
Penso nos economistas do governo, fazendo cálculos do benefício da pandemia para as
contas públicas.
Cancelar CPFs para salvar as CNPJs. O cadastro de pessoas físicas, inscrição estatal que
garante a existência do empreendimento.
Consulto no Google pra tentar me animar e vou arrumar a cozinha cantando Vinícius de
Moraes.
Ai, quem me dera!
Ai quem me dera, terminasse a espera
E retornasse o canto simples e sem fim...
E ouvindo o canto se chorasse tanto
Que do mundo o pranto se estancasse enfim
Queria acabar com uma mensagem positiva. Uma mensagem de esperança. Alguma
coisa que esta crise é apenas uma vírgula. Mas, para o Brasil, os prognósticos não são
nada animadores.
1 Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica
2 Cadastro de Pessoa Física